Colniza(MT)>>>Guariba-Roosevelt: desmatamento recorde em reserva de MT aumenta 720% em meio a ameaças contra servidores
Avanço dos invasores nos últimos oito anos põe em risco a sobrevivência de indígenas isolados Kawahiva em território que já perdeu mais de 7 milhões de árvores
A Reserva Extrativista Guariba-Roosevelt, em Mato Grosso, sofreu uma devastação de sete mil hectares, o equivalente a sete mil campos de futebol, em um período de 14 anos, de 2008 a 2022. Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o desmatamento na unidade de conservação cresceu 720% no período. O número se deve ao avanço de madeireiros ilegais, o que põe em risco a sobrevivência de indígenas isolados Kawahiva. Os invasores ampliaram a destruição na região, mesmo com investigações da Polícia Federal, Polícia Civil e Ministério Público em andamento desde 2021, como mostrou O GLOBO à época. Não cessaram as ações dos criminosos em meio a ameaças contra servidores e suspeita de envolvimento de políticos da região no crime ambiental.
O desmatamento observado chama atenção para o crescimento das invasões na gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro. De 2019 para cá, aumentou 102%, de 709 hectares para 1,4 mil hectares, em 2022. Nesse período, o equivalente a cerca de 4,5 mil campos de futebol repletos de árvores foram destruídos. A destruição na Reserva Extrativista Guariba-Roosevelt está atrelada à ação de madeireiros e grileiros na região, apurou O GLOBO. Desde 2008, a unidade de conservação, que tem 164 mil de hectares em extensão, já perdeu 13 mil deles, ou seja, 8% de sua vegetação original, de acordo com monitoramento por satélite do Inpe.
Para efeito de comparação, um estudo da ONG MapBiomas, publicado na revista Science em 2013, calculou que existe uma média de 565 árvores plantadas para cada hectare da Floresta Amazônica. Considerando o número, os madeireiros já cortaram, desde 2008, aproximadamente de 7,3 milhões de árvores na Reserva Extrativista Guariba-Roosevelt.
De acordo com relatório da Funai, ao qual O GLOBO teve acesso, os invasores Sivaldo Silva Santos e os filhos Oziel Santana dos Santos e “Nuziel”, identificado apenas pelo apelido, são responsáveis por parte do corte de árvores. Juntos, eles derrubaram a vegetação e construíram barracos, que servem de base dentro da unidade de conservação.
Agentes do Ibama e Força Nacional estiveram na região, na semana passada, durante operação de combate aos criminosos, que derrubam árvores para a venda ilegal de madeira. Na ação, um trator que era usado pelos madeireiros foi queimado pelos agentes. Ninguém foi preso.
Após a ação, um servidor da Funai, que preferiu não se identificar, recebeu uma ameaça de que homens iriam invadir a base do órgão no município de Colniza (MT), onde parte da reserva está localizada. A ameaça seria uma retaliação à operação realizada pelas forças de segurança. Policiais da Força Nacional foram acionados para permanecer na base e seguem no local.
O comandante da Força Nacional Antônio Ilton Varela afirmou que, na madrugada do dia 26 de abril, homens chegaram em caminhonetes e motocicletas e se posicionaram em frente à base Kawahiva do Rio Pardo, da Funai. “A situação permanece tensa na região, com ameaça real para a Base da Funai e os servidores públicos que estão no local”, disse o agente em relatório enviado ao Ministério da Justiça ao qual O GLOBO teve acesso.
Alertada sobre o desmatamento desenfreado na região, a Defensoria Pública da União (DPU) enviou um ofício em que cobra medidas mais duras da Secretaria de Meio Ambiente de Mato Grosso (Sema) contra os invasores da reserva extrativista. De acordo a DPU, a Sema não tem apoiado da forma que se esperava as operações contra a destruição na unidade de conservação, que tem os últimos remanescentes contínuos de floresta do estado.
— Como toda situação que envolve regiões de florestas, a reserva precisa de uma presença estrutural, porque só multa não vai adiantar. Essas pessoas que já estão grilando efetivamente a terra precisam ser retiradas. Porque na área de conservação, só quem pode estar lá é a comunidade tradicional, que sofre também riscos por causa desses outros que estão lá ilegalmente — disse ao GLOBO o defensor público Renan Sotto Mayor.
Coronel que combatia ilícitos foi afastado
Em fevereiro deste ano, o tenente coronel da reserva da Polícia Militar Querubino Soares Neto, que atuava na Coordenadoria de Unidades de Conservação da Sema e era um dos mais atuantes na fiscalização, com mais de 50 ações de combate ao desmatamento, foi afastado de suas funções pelo governador Mauro Mendes (União). A decisão teve como base a lei complementar nº 720, de 29 de março de 2022, que determinou que policiais militares da reserva remunerada não pudessem mais atuar na fiscalização das reservas.
A saída de Soares Neto ocorreu depois de ter comandado uma operação que prendeu o vereador de Cotriguaçu (MT) Joaquim Bernardo de Jesus (PL), no fim do ano passado. O político usou o nome Joaquim Madeireiro nas urnas na eleição municipal de 2020. O GLOBO tentou falar com o vereador Joaquim Bernardo de Jesus, porém não obteve retorno.
— Eu fiquei sem entender a motivação da minha desconvocação e toda a movimentação de mudança da lei — contou o tenente coronel.
Procurada, a Sema afirmou que a responsabilidade pelo afastamento de Querubino Soares Neto da equipe de fiscalização era da Polícia Militar do estado. A PM, por sua vez, disse que a Secretaria é quem deveria responder pela desconvocação do tenente coronel, porque a atuação dele era vinculada à pasta.
Em nota, a Sema explicou que vem agindo “com firmeza no combate ao desmatamento e crimes ambientais” na região. Afirmou que o controle é feito por meio de operações em campo, fiscalizações por imagens de satélite e aplicação de multas.
De acordo com a pasta, desde o mês de março, o governo estadual vem realizando uma “ação para retirada dos invasores e construção de postos permanentes de fiscalização” e que cerca de R$ 702,8 mil devem ser investidos no Conselho de Segurança Pública de Colniza para a formação de bases na cidade. A Secretaria afirmou que realiza ações por meio da Operação Amazônia, com 200 servidores em campo fiscalizando a área.
Kawahiva ameaçados
Segundo a DPU, o povo Kawahiva é um dos mais afetados pelo avanço dos invasores porque habitam o território vizinho ao da reserva invadida. Em isolamento voluntário, os kawahiva nunca tiveram contato com pessoas não indígenas, portanto, uma aproximação com pessoas de fora pode ser fatal.
O risco, de acordo com o órgão, é de que doenças, como a Covid-19 ou uma simples gripe, possam ser transmitidas aos kawahiva isolados pelo contato com os invasores. Por não ter memória imunológica para nenhuma das doenças, a DPU diz que esta população pode ser extinta se algum indígena for infectado por uma virose.
— Seria um desastre. Os kawahiva podem ser dizimados se houver qualquer contato com esses invasores. A política usada com povos isolados é a de não contato, porque o histórico nos indica que, ocorrendo, ele é trágico — afirmou o defensor público Sotto Mayor. — Populações isoladas, como os kawahiva, têm um sistema de vida diferente. É por isso que a gente precisa protegê-los. Não dá para arriscar. Um cálculo errado, às vezes um madeireiro que entra em contato com esses indígenas, pode matar todo mundo, uma população inteira.
O Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (OPI) notificou, nesta segunda-feira, o Ministério Público do estado sobre a situação dos kawahiva. “Há o risco constante de massacres com a presença de invasores no interior do território. Seja pela violência, seja pela doença, a ameaça de genocídio é sempre concreta”, diz o ofício.
De acordo com o documento, o OPI considera que, por estar localizada no limite com a reserva Guariba-Roosevelt, a terra indígena é “abraçada pela morte” com o avanço dos madeireiros.
O relatório da Funai revela, além dos nomes de invasores, já ter ocorrido desmatamento dentro da terra indígena. Estradas e pontes já foram criadas dentro do território Kawahiva do Rio Pardo, para facilitar o deslocamento dos caminhões carregados de toras de madeira, como a do jatobá, um das árvores mais cobiçada pelos invasores. Os madeireiros também arrancaram as placas que indicavam o limite entre a terra indígena e a reserva extrativista.
— Com o aumento desse desmatamento, nada impede que esses grileiros possam adentrar de vez a terra indígena, se é que já não adentraram. Se não existe uma fiscalização, nada impede que isso possa acontecer — disse o defensor público.
Para evitar a retirada da reserva, os grileiros começaram a ocupar a região construindo casas e barracos e ocupando-os. Os invasores também preencheram o espaço com gado. A ideia é gerar a justificativa de que a área é produtiva para eles. Os animais, no entanto, estão em condição de fome. O GLOBO teve acesso a imagens de bovinos mortos e outros desnutridos, sem condições de sequer andar pelo pasto.
— Pela dificuldade de retirar essas pessoas, eu as notifiquei para saírem voluntariamente da unidade de conservação, porque senão o Estado iria promover a retirada. Nós não podíamos chegar e pôr fogo num barraco que tinha crianças e criação de gado ao lado — disse o tenente coronel Soares Neto.
Incentivo à devastação
De acordo com os dados sobre incremento de desmatamento do Inpe, a Reserva Extrativista Guariba-Roosevelt teve o seu pior estado de conservação entre 2018 e 2022, chegando ao ápice no ano passado. O período compreende desde a campanha eleitoral vitoriosa de Jair Bolsonaro (PL) à Presidência da República até o fim de seu mandato.
Em 2021, reportagem do GLOBO mostrou que o governo federal e a bancada ruralista pressionaram pela aprovação do Projeto de Lei (PL) 510/2021, do senador Irajá Abreu (PSD-TO), que facilitaria o caminho para que devastadores de florestas públicas pudessem se apropriar legalmente das áreas invadidas.
A matéria está em tramitação no Senado. Após a troca da legislatura, a partir da eleição de novos parlamentares em 2022, a pauta é discutida em duas comissões da Casa: a de Meio Ambiente, cujo relator é Fabiano Contarato (PT-ES), e Agricultura e Reforma Agrária, na qual espera-se a apresentação do relatório da senadora Margareth Buzetti (PSD-MT).
Apesar do crescente aumento do desmatamento, a Secretaria de Meio Ambiente de Mato Grosso afirmou, em nota, ter investido aproximadamente R$ 757,4 milhões em operações de fiscalização em campo e no acompanhamento do desflorestamento por meio de satélites, no período de 2019 a 2022. No primeiro trimestre deste ano, segundo a pasta, R$ 14,8 milhões já foram depositados para a realização das ações.
A Secretaria disse ainda que há um grupo de trabalho com ações integradas das forças de segurança de Mato Grosso com a Polícia Federal, Ministério Público Estadual, Promotoria de Justiça da Comarca de Colniza e Gaeco Ambiental em atuação.
Sobrevivência de ribeirinhos afetada
Afetado pela invasão dos madeireiros, um ribeirinho extrativista afirmou que a sobrevivência de sua comunidade também vem sendo colocada em risco. Ao GLOBO, o homem, que não quis se identificar por temer represálias, relatou que a exploração ilegal de madeira vem tirando a forma de sustento de sua comunidade, por não conseguirem mais extrair, por exemplo, o óleo de copaíba das árvores. Segundo ele, a planta é muito visada pelos madeireiros, que a derrubam para vendê-la ilegalmente.
— O desmatamento nunca parou. Enquanto isso, a Reserva está indo “pro pau”. Isso está atingindo a gente diretamente. Porque os impactos são em tudo o que você pode pensar — afirmou o morador.
O ribeirinho relatou que uma vez saiu de casa e se deparou com um homem dentro do terreno onde mora. Ele tentava derrubar uma árvore plantada no quintal da residência.
Fora esse episódio, o morador falou não ter contato com os madeireiros, apesar de conhecer alguns de vista. Ele disse ainda já ter recebido intimidações por parte dos invasores, que o incentivavam a desmatar a área também.
— A gente não precisa desmatar nem derrubar a floresta para viver — respondeu.
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